Cor de canela, cheiro de sangue

“Será que morreu de morte matada ou de morte morrida?”1


Andando pelos becos do timbó, entre as ruas e vielas, o som que tá tocando é o tecnobrega, cores, cheiros, gente, muita gente transitando. Os meninos empinando suas pipas coloridas, as meninas reunidas em frente ao mercadinho, conversam animadas, todos eles olhados pelos vizinhos ou avós, pais, quando presentes, trabalhando. No geral, é bem comum as crianças órfãs na comunidade, quando não de pai que é o mais habitual, de ambos. Nem todas as crianças têm acesso a uma família onde os genitores os cuidem, ou mesmo olhem. 

No Brasil, a generalização das famílias não é um conto de fadas. A maioria dos lares brasileiros são tocados por mães negras, solos. E a realidade é bem mais cruel com estas, com sua descendência e com os seus sonhos, quando ainda existem. As meninas negras são as mais estupradas, são as que mais viram mães antes dos quatorze, não existe de fato, na prática, uma proteção social aos que mais necessitam, para estes, a presença do Estado mais parece um caveirão. Não existe amor ou acolhimento, não existe repartir o pão ou afeto. Os trabalhadores não podem fazer um trabalho de cura, quando eles mesmos estão adoecidos, e o sistema é adoecedor, saúde mental é um conceito abstrato e parece algo muito distante do real. 

Enquanto todo tipo de situação cruel e inenarrável se passa na comunidade, de um por um, os sonhos vão sendo extintos, sonhar é coisa de loucos. Por que as pessoas acreditariam na possibilidade da mudança para melhor, se em cada oportunidade recebem o que há de pior? As vezes pode até parecer constrangedor ter nascido no país que se declara como o mais “cristão” do mundo e ao mesmo tempo termos dados de violência capaz de arrepiar qualquer pessoa. É aqui no Brasil a polícia que mais mata e a polícia que mais morre no mundo, a pior política de drogas do mundo, dados que estarrecedoramente só se agravam, problemas sociais que só se aprofundam, trabalhadores dos governos que não se interessam de fato pela mudança real da sociedade para melhor, egoísmo, individualidade, omissão, covardia, conivência, prevaricação… enquanto as crianças são abandonadas, aliciadas, vilipendiadas, estupradas, viram mães, de outras crianças, que servirão para a manutenção do mesmo ciclo de violências, não têm acesso à saúde, nem proteção do Estado, os “cristãos” do dia a dia, em suas falas e em suas vidas parece que se esqueceram o exemplo, a vida e a morte de Cristo, esqueceram por amor às coisas materiais que o único mandamento, era Amar.

Quando a bala do fuzil, do caveirão aéreo ou terrestre, quando a bala da pistola do agente do Estado mata um dos nossos, foi um universo que se perdeu. Quando nossas crianças não acessam seus direitos fundamentais, muitos universos se perderam. Quando a linha da pipa, salpicada com cerol leva alguma vida, é sempre dos nossos. 

Nenhuma bala perdida leva vidas de ricos em bairros nobres, ainda que a origem das riquezas sejam dos maiores crimes da humanidade. O cheiro de sangue e o desespero do choro de uma mãe pela morte prematura e evitável do seu filho, é majoritariamente um choro da periferia, ele é absolutamente restrito a periferia quando se trata de ações do Estado armado. Os serviços de saúde pública não chegam, não dão conta da demanda, recebem verba limitada, verbas usurpadas, só chega o resto do resto dos desmandos na ponta, para o usuário do SUS, mas para políticas de violência, nunca faltou verba. Por isso, em 2022 se gastou mais com militares do que com saúde e educação juntos no Brasil. 75% da população é exclusivamente assistida pelo SUS, quem vai cuidar dessas crianças em situação de grande vulnerabilidade se não for a saúde e a educação públicas? 

As meninas da frente do mercadinho se recolheram, pois começou mais uma troca de tiros, são os agentes públicos, mais uma vez, entrando no nosso território, com a violência que lhes é peculiar, vieram com máscaras, sem nomes nas fardas, vieram fazer o que aprenderam. E nós, não temos o Estado para nos apoiar, nenhuma das instituições públicas, nem ministérios, nem agências, nem sistemas, poderão mudar o cenário das favelas para melhor, se não houver uma interrupção do mais grave crime que ocorre impunemente no Brasil ininterruptamente pelos últimos 500 anos, o genocídio negro e indígena. Para o Estado e a sociedade progredirem, é necessário deixar de tolerar o crime do racismo, interromper o genocídio negro, interromper os abusos de poder, as prevaricações absurdas que ocorrem nas vigilâncias. As crianças negras brasileiras foram abandonadas há séculos e nunca foram acolhidas de fato, aqui, as crianças negras conhecem desde cedo o que é a violência do racismo. Nossa única esperança, é a fé na construção de um Brasil autenticamente pluralista, plástico e revolucionário. 

As pipas dos meninos já foram recolhidas, a noite chega e nasce, com ela a angústia do desconhecido, mais uma noite, se chover, molha, se ventar, capaz de levar o teto de lona, se transbordar o rio, as pessoas terão que construir novamente tudo do zero… enquanto os pobres são obrigados a permanecerem sob o abrigo de lonas, ou sob as marquises nas ruas, se ouve de funcionários públicos que “fizeram tudo que podiam”. É incompetência ou covardia?


1. RUIZ, Antonio Machado, Proverbios y cantares XXIX em Campoas de CAstilla, 1912.

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