Gerações de multiplicadoras

Nunca nos disseram que seria fácil



Era um fim de tarde, como qualquer outro, podiam-se escutar os sons de alguns animais entre a cotidianidade, pássaros, cachorros, cigarras, mas era o bicho gente, que fazia o maior barulho… Eram muitos deles, e andavam de um lado para o outro, como se a vida por alí passasse muito rápido para quem observava da cadeira do alpendre. Enquanto os meninos da rua de baixo se reuniam para fumar um fininho na praça da bastilha, que estava logo na volta da esquina(o nome da praça era João Domingues, mas ninguém do bairro chamava pelo nome original), alguns casais caminhavam desatentamente, uns de mãos dadas, outros com seus cachorrinhos de estimação. Esta também era a hora em que os trabalhadores que moravam na vizinhança estavam chegando do dia de trabalho, saiam dos transportes coletivos na parada em frente a escola, mesmo a altura de onde cruzando a rua estavam a padaria à direita e o Postinho de Saúde do SUS à esquerda, tão lindo, bem cuidado, ornamentado e sempre com muitas atividades para os moradores, além das plantas medicinais na farmácia viva, remédios da farmácia alopática, outras práticas integrativas e complementares, a população em acompanhamento em saúde, física, mental, social e espiritual, além dos profissionais de saúde para empoderar e gerar autonomia, numa clínica cogerida e ampliada, lá funcionava na prática uma política brasileira que em 2023 completa 20 anos de existência, chamada: Política Nacional de Humanização. Alguns transeuntes já vinham com suas sacolas de compras, outros entravam na padaria para comprar o pão que havia pouco tinha saído do forno e como cheiravam bem, me faziam sonhar com o cafezinho que logo estaria pronto… 


Ainda não me apresentei, sou Amanda e recebi esta casa dos meus pais, que mesmo tendo sido de origem muito humilde, fizeram um grande milegre com todo o pouco que tinham, minha mãe é a dona Amara e meu pai o seu da Paz. Na verdade minha mãe havia sido batizada Graça, mas minha avó não a chamava pelo nome de batismo… assim como era conhecida, minha mãe passou por muita amargura até conhecer o lado doce da vida, começou a trabalhar desde os 5 anos como doméstica, também com essa idade pegava baldes de água no rio e levava na cabeça para poder ter um pouco de água em seu humilde barraquinho, sempre muito apaixonada por livros e pelos estudos, tinha muita facilidade para aprender quaisquer coisas que se lhe ensinasse e com um desempenho espetacularmente acima da média, o que geralmente causava muitos problemas relacionais como sabotagens, invejas, intrigas, discórdias e ela foi se acostumando a parecer ser bem mediana, na tentativa de se proteger das pessoas que tentavam lhe fazer mal. Trabalhou em chão de fábrica, era a fábrica de uma empresa grande do setor de tecnologia e ficava na saída de Vida Nova, era na verdade uma montadora, logo foi aprovada em um concurso público federal, se formou em economia e eu, eu já nasci privilegiada… meus estudos foram pagos nas melhores escolas da cidade, além dos cursos à parte de francês, inglês, espanhol, alemão, latim, libras, pintura, artesanato, violoncelo, piano e tantos outros. Além disso, meus pais fizeram todos os esforços possíveis e pagaram meus estudos para que eu pudesse me formar como jurista, posteriormente fui aprovada no exame de ordem, assim, me tornei advogada. Estou portanto nesta obra em um trânsito contínuo entre personagem e narradora, não estranhem o patchwork que vos apresento… 


Amanda (pensa): Nada melhor que ter acesso a uma vida tranquila e paz!


Mas para estes lados da cidade, as coisas foram construídas para que nossas vidas não fossem de “vivência”, vida e paz, mas de sobrevivência… para que valessemos muito pouco desde a ótica mercadológica, mercantilista e neoliberalizante das vidas… valessemos quase nada. Vejo todo o esforço que os professores e voluntários fazem para tirar os meninos da rua e apresentar as possibilidades que somente os estudos podem proporcionar aos que nasceram por aqui… romper os ciclos de opressão, transpor as barreiras da servidão, furar a bolha socioeconômica oriunda da escravidão, nos exige um esforço colossal e coletivo… não faz tanto tempo assim, os nossos ainda eram estuprados, espancados e mortos publicamente com legitimidade da lei. Pensando bem… parece que as práticas de outrora ainda não foram abolidas da cotidianidade do meu povo, mudaram as leis, passaram os anos, mas o Estado permanece com os mesmos métodos de legitimação de desumanização do povo afro diaspórico sobre todo o território nacional, como somos as maiores pagadoras de impostos no Brasil, somos nós, no fim das contas, que pagamos toda a degradação que nos são infligidas… mas parece que essa é uma outra conversa, conversa para já já…


Agora, o cheiro do café já está despertando meu sistema límbico… Dona Ana vem pela porta principal, traz, além do café, o pão quentinho e o melhor queijo coalho assado de Passará (nome de nosso distrito, na cidade de Vida Nova). Ela vem dentre as folhas das costelas de Adão e samambaias que pendem das vigas de carvalho da varanda alta e larga daqui de casa e o ritual se repete duas vezes na semana, nos dias que a Dona Ana vem ajudar aqui com as atividades domésticas. Sentamos juntas à mesa, as três, eu, Dona Ana e Alice sua filha, que sempre vem para cá, ela também gosta de se sentar para estudar na biblioteca da casa, batizada de “Augusto dos Anjos” e de passar o tempo lendo os livros numa ordem que me parece ser aleatória, além de às vezes ficar estática, contemplando quadros e artefatos de diversas culturas pelo mundo que pude adquirir e ganhei de amigos que foram a viagens e me trouxeram.

Sempre sentamos no alpendre, tomamos café e proseamos, nossas conversas são discussões e tomam quase sempre um curso habitual, como se não precisássemos de tantas voltas, os temas são sempre densos, carregados de teores sociológicos e psicológicos, transitam entre as questões dos nossos cotidianos, uma análise perspicaz da vida, das vidas e da lógica que nos impede gozar esta vida em plenitude… cuidado, acesso, direitos, persistências, resistências, resiliências, organizações, movimentos, potência, força, fé, paz… Chegamos outro dia a conclusão de que quase todas nós vivemos algum tipo de  stress pós traumático, ou algo que se assemelha em gênese a este diagnóstico, dores, violências constantes, abandonos, abusos de diversos tipos, modos e graus, estupros, agressões físicas, verbais, conceituais, presenciamos e vivenciamos de perto, mortes, relatamos a vivência do impactante e impregnante cheiro férreo de sangue, sofrimentos, medos, a necessidade de afastamento do real pela proteção de nossa saúde mental… a morte de nossos e nossas semelhantes nos impacta a cada notícia… “- foi bala perdida? foi o ex marido? ex namorado? foi facada de amigo? foi estrangulamento? foi suicídio? - Poderia ter sido eu! - Poderia ter sido qualquer uma de nós!” e todos os dias se vão, várias e vários de nós, por causas completamente evitáveis, mas completamente negligenciadas pelo poder público. Estamos completamente abandonadas e o Estado só se faz presente com sua face opressora, violenta, violadora… não nos vemos nos espaços de poder, nem nos espaços de decisão, não temos nossas vozes ouvidas e somos silenciadas diuturnamente no Brasil ainda.

 Entendemos que o que cotidianamente vivemos são diversas situações de muita violência, muitas repetições do padrão de desumanização de nossas vidas, dos nossos corpos, perpetuação de pensamentos colonizadores que entranhados nos espaços de poder, nunca foram interrompidos e que precisamos de libertação de nossas próprias consciências, já que dos que se beneficiam do sistema, invariavelmente, nenhuma mudança virá. Até mesmo para poder entender a contextualização socio-cultural e política do Brasil atual, do que vivemos hoje e nos últimos 523 anos.


Dona Ana já está trabalhando comigo há 4 anos, foi durante muitos anos ativista no bairro e mobilizadora de nossa comunidade, educadora popular e militante pelos direitos dos mais vulnerabilizados, ajudou com a pastoral da criança na luta pela construção do centro de saúde do bairro e agora trabalha na manutenção da farmácia viva da UBS de Passará, já que é exímia conhecedora de plantas medicinais de uso tradicional e suas propriedades curativas, trabalhou na luta pela construção da creche municipal e hoje também luta por um campus da universidade estadual na cidade… ela não pára e virou um dos meus exemplos. Mas se aposentou e tinha muita dificuldade de se manter no básico, com tantas contas: remédios, aluguel, feira... Desde o primeiro ano dela aqui decidimos conjuntamente que os tempos de trabalho seriam também dedicados aos estudos. Reduzimos a carga horária e nos sentamos para discutir sobre política, história, geografia, filosofia, espiritualidade, religiosidade, prazer, paz, subjetividades e qualquer outro tema que nos pareça relevante para nosso crescimento como humanas e como seres pensantes e críticos, depois que a casa já está limpa, as louças, as roupas lavadas e as plantas aguadas, é hora do café, geralmente no final da tarde. 

Na verdade Dona Ana é minha ajudadora e temos isso claro, o trabalho dela me proporciona algum tempo livre para que eu possa me dedicar aos meus projetos, mas nunca deixei que ela trabalhasse sozinha, sempre procuro ajudá-la para que possamos começar nossos debates e contações de histórias, o mais rápido possível. Agora, ela está no 3o ano de sociologia e estuda EAD, a faculdade fica por nossa conta e também acordamos de pagar o cursinho para sua filha Alice, que está no 2o ano do ensino médio, ela quer fazer direito e lutar por justiça social, na construção de um mundo menos desigual, por reparação aos povos que nunca foram nem considerados no Brasil com relação aos seus direitos, que perpetua pelos últimos  500 anos o maior genocídio da história da humanidade, com dados piores do que o de qualquer guerra e que aparentemente passa desapercebido aos estudiosos da saúde pública e da vigilância em saúde… pensamos que esta omissão é atravessada pela subjetividade das pessoas que estão nas posições de poder nestes espaços, pois, sendo pessoas brancas, jamais poderão compreender a situação que ou se omitem quanto a interrupção ou mesmo auxiliam ativamente na perpetuação. A violência dos colonizadores e seus descendentes ainda não teve fim.  


Dona Ana questiona: - Quem disse que justiça social não é saúde? E por que alguém acreditaria nisso? 


Ela costuma dizer que tudo o que vivemos como sociedade hoje faz parte de um mesmo projeto, trazido para este território nas naus portuguesas, já os nossos sonhos, vieram amontoados, entre ratos, doentes, fome, estupros e mortes, em navios negreiros. Nada vai nos parar. A violência dos nossos algozes não nos assustam, medo é uma palavra que só conhecemos de ouvir falar.


Alice continuou: - Enquanto não pensamos em disputar nossos direitos, porque precisamos pensar na próxima refeição, lutamos para sobreviver dia após outro, no país onde a abolição da escravatura há 135 anos, foi feita literalmente para “inglês ver”.


Dona Ana acrescentou: - Todo  dinheiro e riquezas que nossos antepassados produziram sem nenhum tipo de pagamento além da dor que sofreram por mais de 350 de escravidão não podem ser simplesmente olvidados… lembro de um texto que está em Tiago 5:4 “Vejam, o salário dos trabalhadores que ceifaram os seus campos, e que vocês retiveram com fraude, está clamando contra vocês. O lamento dos ceifeiros chegou aos ouvidos do Senhor dos Exércitos.” E somos nós a descendência destes ceifeiros, nossa justiça já virá!


Eu também me pronunciei (Amanda): - Por que mesmo pagando os maiores impostos proporcionais deste país ainda não podemos sonhar com uma vida ou uma aposentadoria digna? Por que 28% da população brasileira que é de mulheres negras ainda é o 1o lugar de ocupação neste país, a de trabalhadoras domésticas? Sendo que destas apenas 30% têm algum direito trabalhista? Por que filhas de militares que nada agregam à sociedade ganham mais que médicos que trabalham 44h neste programa do governo que os trata como bolsistas e não garante seus direitos trabalhistas, saem depois de 8 anos com uma mão na frente e outra atrás? Enquanto o povo dorme, os militares receberam mais recursos que a saúde e a educação juntas em 2022! Quem vai trazer a justiça que precisamos? 


Alice sucede a fala: - Todos os descendentes dos escravizados deveriam saber que os nossos sofrimentos têm autores e não é “aleatoriedade da vida” ou uma “expiação divina”, mas um crime contra nossa humanidade… utilização de todo um sistema para benefício de poucos em detrimento da maioria. Negação de direitos para manutenção de privilégios. Omissão, covardia, injustiças, ameaças, violências, mortes… já basta!


Pensamos juntas e chegamos a uma conclusão…: - Enquanto não formos ouvidas como seres com plenos direitos, enquanto não formos acolhidas em nossas subjetividades, enquanto as forças de segurança forem usada para silenciar ou dizimar povos, enquanto a justiça e os altos cargos das instituições forem majoritariamente composta pelos que se beneficiam deste projeto, teremos muito trabalho pela frente!!!


Amanda: - Sonho com o dia em que nosso conhecimento e nossas epistemologias sejam também pilares e fundamentos da brasilidade. Quando as universidades e instituições forem usadas para desenvolvimento de uma ciência autenticamente pluralista e não etnocêntrica, quando as situações inaceitáveis com as quais nos deparamos em nossas vidas e nossos ambientes de trabalho com degradação moral e humana seja realmente disparadoras de mudanças, usadas como eventos sentinela para a transformação de realidades. Não é possível que considerem normal o país mais negro do mundo fora da Africa ter negros em maioria somente até os 39 anos, segundo o Censo de 2010… que uma planta medicinal segura de uso tradicional negro ainda seja criminalizada mesmo o ministério da saúde tendo publicado em 1958 que sua proibição era apenas para a manutenção da eugenia, pureza e supremacia branca, que a ANVISA mantenha a Cannabis sativa na lista E e o THC na lista F de substâncias proscritas do anexo 1 da portaria 344/98, dando permissão para uma política de drogas que é a pior do mundo segundo o Global Drug Policy Indexo de 2022 se isso não caracteriza um genocídio, eu não sei mais o que caracterizaria… 


Alice: - Quando nossas existências forem respeitadas, incentivadas e reparadas, quando tivermos finalmente acesso a uma vida plena e de qualidade, saúde, educação, moradia, emprego, paz, todos nós, viventes sobre este território, independente de cor, crença, gênero, orientação sexual, limitações, nacionalidade ou qualquer outra questão de tantas que nos atravessam… viveremos em paz!


Dona Ana: - Quando as verbas públicas aplicadas em nossos desenvolvimentos já não forem consideradas gastos, mas investimentos. 


Concluímos… Sonhamos com a construção de um presente e futuro possíveis, viáveis, comum, de vida em abundância, já que cada dia que não interrompemos a violência do Estado, a violência da sociedade, a violência da guerra às drogas, é um dia a mais que nossas irmãs negras estão chorando a perda de seus filhos e muitas e muitos de nós estão sendo encarceradas e encarcerados. Em 2017 uma notícia dizia que a cada 23 minutos 1 homem negro era assassinado, será que em 2023 estes dados não estão escancaradamente piores? Quantas mães já choraram e ainda vão chorar as mortes dos seus filhos, somente hoje?!


Ficamos sempre muito felizes e empolgadas com nossas discussões e sabemos que temos o dever de sermos felizes!  Nossas antepassadas sofreram demais para que desperdicemos cada oportunidade que nos é dada, cada dia que somos abençoadas com o dom da vida, nossa tão potente vida! 


Hoje, depois desse maravilhoso café preto, o meu adoçado metade com açúcar, metade com adoçante, vamos todas pensar nos nossos privilégios e oportunidades, já articulando os próximos movimentos de mudança para nosso território, temos um acordo: levarmos as conclusões dos nossos debates como sementes a serem propagadas pelo mundo, em nossas relações cotidianas, na sala de aula, na padaria, no salão, no postinho de saúde, em toda e cada oportunidade, atentas todo o tempo. Queremos a materialização de nossos sonhos de uma Comunidade Negra Feliz, sem injustiças ou covardias, sem omissão e sem conciliação com reprodutores de opressões contra nós. 

Esse final de semana devemos ir à Mostra de Cinema: Pensamentos Livres, assistiremos com os defensores do SUS na comunidade a 8va Conferência de saúde e discutiremos a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, a base de cerveja gelada, queijo coalho assado com melaço e liamba. 


O Brasil é território indígena de maioria negra, um salve às nossas resistências, às nossas ciências, nossas tecnologias, nossos modos de vida, seguimos resistindo e resistiremos até a vitória, até a violência ser abolida de nossas vidas e de nosso território!


Comentários

Postagens mais visitadas